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A Pedra do Letreiro

A Pedra do Letreiro é um cantinho onde pretendo partilhar convosco as minhas paixões pela escrita e viagens/caminhadas pelos recantos destes dez grãozinhos de areia espalhados por este imenso Atlântico

A Pedra do Letreiro

A Pedra do Letreiro é um cantinho onde pretendo partilhar convosco as minhas paixões pela escrita e viagens/caminhadas pelos recantos destes dez grãozinhos de areia espalhados por este imenso Atlântico

AGRIÕES DOS NOSSOS SAUDOSOS TEMPOS ÁUREOS

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Entre finais da década de oitenta e meados da década de noventa do século passado, ainda havia na ilha de Santo Antão muitos trapiches (ou, se assim preferirem, engenhos) movidos à tração animal, normalmente, bois e mulas. Mas, no meu caso, o que eu gostava mesmo era de ver aqueles bois possantes “cangados” no trapiche do meu avô paterno, lá em Agriões de Chã de Pedras. Davam um sem fim número de voltas à volta do trapiche, ao comando do “colador de bois” que, munido de um chicote e entoando cantigas de trabalho (“Eh boi!”), mantinha-os sincronizados na “canga” e motivados no duro esforço na arena do trapiche.

Bois sempre houve muitos no curral do meu avô! O seu amor pelos bichos era incomensurável, que lhe dava enorme prazer vê-los gordos, de pele vistosa e saudáveis. O curral do meu avô era uma pequena Arca de Noé! Fora os bois de trapiche, havia vacas e cabras leiteiras, ovelhas, galinhas de terra e de mato, perus, patos, porcos, burros e mulas. As porcas andavam livres pelo quintal traseiro da casa grande, ora remexendo a terra e o estrume, à procura de restos de comida, ora esteiradas à sombra, a amamentar os seus vários leitões.

O meu tio António de Chica conta que, uma certa vez, querendo o meu avô castrar um porco varão (em Santo Antão chamamo-lo “marrasco”), dias antes, mandou alguém ir avisar disso o Sr. Januário, um exímio capador de bichos que havia lá em Agriões. O Sr. Januário gabava-se que conseguia capar todos os bichos, machos e fêmeas, tanto é que capava gato e galo, e ainda interrogava a si mesmo se não seria capaz de capar uma mulher. Avisado que estava o Sr. Januário e com a devida antecedência que a responsabilidade exigia, era preciso garantir que, durante os dias que antecediam a delicada cirurgia, nem um pingo de álcool lhe iria parar à boca. Pois, capar um bicho exige que as mãos do capador estejam serenas que nem uma libelinha quando pousada num ramo junto a um charco de água. Assim, alguém ficou com a responsabilidade de “guardar” o Sr. Januário, a fim de evitar-se que o álcool lhe fosse ter à boca e comprometer a “capadura”.

E assim foi, durante esses dias, o Sr. Januário ficou na penúria de álcool, muito provavelmente contra a sua vontade, que nem os montes à espera da bafejada chuva. Será que conseguiram realmente enganá-lo ou estaria ele a preparar alguma astuta estratégia que só ele estaria a par até o seu desfecho?! Bom, o certo é que chegado o dia, lá estava o Sr. Januário, sereno que nem uma libelinha, pronto para capar o porco varão. Os ajudantes ataram os pés do bicho e puseram-no de costas voltadas para o chão. Foi então que o Sr. Januário, depois de lavar bem as mãos, mandou trazer o grogue para desinfetar os testículos do porco e a navalha. Ele juntou bem as duas mãos, em forma de recipiente (“côtchô”), para que nem um pingo do excelente grogue caísse ao chão, e deu ordem para que lhe enchessem as mãos. E zás-catrás! O homem sorveu o grogue que lhe depositaram nas mãos, até o último pingo! O meu avô levou as mãos à cabeça e gritou, já o mataram! Mas não, o homem era bastante resistente e as suas mãos iriam manter-se serenas que nem uma libelinha, enquanto estivesse a capar o bicho. Tinha experiência de sobra nesse assunto!

Assim que o grogue, depois de acariciar-lhe a garganta, sê-lhe assentou no estômago, que já há vários dias se encontrava sóbrio, o Sr. Januário disse-lhes: “Sim senhor! Agora sim, já podem colocar o grogue para lavar os testículos do porco”! E lá capou o bicho sem sobressaltos nenhuns, porque nessa matéria ele já era um cirurgião catedrático. Depois, com certeza, brindou o sucesso da operação com mais uns dois tragos do bom grogue e, no caminho para casa, mais um ou outro lhe terá descido pela garganta abaixo. Quando ele já estava quase a montar a “Tchãzinha”, sentou-se para descansar um pouco e, enquanto mirava a casa do meu avô, gritou bem alto: “sim, se fosse o Sr. Rufino vocês teriam enviado uma mula para ir busca-lo e depois levá-lo até Pia de Cima”! O Sr. Rufino é um exímio enfermeiro, hoje já reformado, e que, nesses tempos, era praticamente um médico que percorria os vários vales da ilha, levando auxílio médico àqueles que precisavam. Para o Sr. Januário, seria de todo justo que ambos recebessem o mesmo tratamento, pois um era um enfermeiro quase médico e o outro um capador quase veterinário. 

De volta aos bois, lá no curral tinha o Bem-Posto, Crioulo, Sandokan, Africano e muitos outros, dos quais já não me lembro os nomes. Belíssimos e possantes bois, capazes de transformar em calda centenas de braçados de cana-de-açúcar, numa única faina diária! Nós, os meninos, ficávamos a ver, com grande entusiasmo, esses bichos a fazer o trapiche jorrar calda que nem uma fonte depois das chuvas. Eles eram os nossos heróis, assim como eram o Sandokan, Bud Spencer, Sylvester Stallone, Chuck Norris e outros heróis que víamos nas videocassetes nos serões na casa do meu avô. Sempre que íamos ao curral, aproveitávamos para beber uma caneca de calda fresca. Na casa de calda, a calda era armazenada em pipas de madeira e latão, durante alguns dias, cumprindo o estágio de fermentação, antes de ser destilada no alambique. Assim, tinha a calda fresca que, depois de acrescida o tempero de “azugra” (refugo de calda destilada), transformava-se em calda temperada. Na fase seguinte, encontrava-se a calda ferventa, uma espécie de calda em ebulição, já com algum teor alcoólico, que gerava bolhas de álcool que explodiam à superfície da pipa. Por último, vinha a calda ventilada (“bentiada”), calda cujo processo de fermentação já se tinha cessado e que, em poucos dias, seria destilada no alambique.

Naquela época não havia eletricidade no vale da Ribeira Grande, coisa que só viria a acontecer na segunda metade da década de noventa. Assim, a noite trazia com ela o negrume total, fazendo despertar, nas nossas tenras mentes de menino, o medo dos seres da noite, principalmente de nhê M’ri Knilinha, uma criatura bruxa que, segundo os adultos, vivia na encosta para lá do caminho que passa junto à casa dos meus avôs. Dizia-se que ela aproveitava o escuro da noite para roubar as crianças que ousavam aventurar-se para fora de casa, levando-as para o seu esconderijo, onde as devorava, depois de cozê-las no seu caldeirão. Uma fantasia com contornos idênticos aos do conto conto alemão Hansel e Gretel.

Aproveitávamos assim os últimos momentos de luz à boquinha da noite para as atividades lúdicas e recreativas. Macaquinho chinês, sapatinho da licá, “mã gatxada” e “putim” eram algumas das atividades nas quais queimávamos o nosso tempo livre. Ao cair da noite, depois do jantar, ligava-se o gerador elétrico e toda a meninada e os adultos sentavam-se à volta da caixinha mágica, para ver os heróis do cinema em ação. Era um dos melhores momentos do dia, tanto é que, mal se ligava o gerador, o pessoal das redondezas vinha juntar-se a nós. No dia seguinte, discutíamos, nós os rapazes, qual de nós era o herói do filme do dia anterior (Sandokan, Bud Spencer ou Chuck Norris), enquanto recriávamos as cenas de luta que ficavam gravadas na nossa memória.

Em Agriões, dava-me imenso gosto acompanhar a minha avó nas suas idas às hortas. No Leandro ela tinha um pequeno cafezal, daí que alguns rapazes mais graúdos me batizaram de “Pê d’kefê”. Quase sempre ralhava-me com eles, mas tudo não passava de uma brincadeira. Quando íamos a horta de N’seta, colhíamos batatas-doce que eram uma delícia. Particularmente, eu gostava muito de comer crua uma espécie de batata-doce de cor laranja, à qual chamamos batata ginginha em Santo Antão. Lembro-me também de, nós os meninos, irmos apanhar agrião na Ribeira de Zebêl, momento que eu aproveitava para beber água alcalina numa pequena nascente que existia junto de uma captação de água. Também, nessas idas à Ribeira de Zebêl eu colhia sementes de tanchagem (“santaja”) que em casa misturava com leite de cabra quente. Era uma delícia!

Na época das chuvas, depois das cheias fazíamos as nossas piscinas na Ribeira de Lantxinha, cercando um troço dela com pedras e troncos de bananeira. Banhávamo-nos nelas por longos períodos, numa singular diversão, até ouvirmos o nosso avô chamar por nós. Nisso, desatávamo-nos a correr, feitos umas alimárias, na pressa de chegar em casa a tempo de evitar um doloroso encontro com o ingrato (assim se chamava o cinto do meu avô).  

 

texto @Socram d'Arievilo

foto @Calu de Mijona 

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