BOI NO TRAPICHE: MOENDO HISTÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA
Uma das coisas que mais me orgulham nesta vida é o facto de ter nascido na ilha de Santo Antão. Saber que a minha placenta foi reduzida a cinzas que se misturam ao solo vulcânico dessa ilha faz-me sentir parte dela, de tal modo que existe um cordão umbilical no meu imaginário que nos liga num laço eterno. Santo Antão é, e sempre será, a minha maior fonte de inspiração.
Hoje, estive a recordar, com bastante saudosismo, o tempo em que havia na ilha muitos trapiches movidos à tração bovina. Ainda eu menino, o meu avô paterno tinha um desses trapiches que era movido por possantes bois. Lembro-me perfeitamente que havia o Sandokan, o Bem-Posto, o Crioulo, o Africano...entre muitos outros. Era uma alegria enorme da meninada ver aqueles bois aos pares serem "cangados" ao trapiche, um de dentro e outro de fora, para depois serem "colados" por um homem que ia logo atrás deles, fazendo no ar círculos com um chicote em forma de ameaça, enquanto ia entoando palavras de encorajamento ("eh boi").
De um lado do trapiche posicionava-se um homem cuja responsabilidade era introduzir as canas nas estreitas aberturas que existiam entre os "ferros" de trapiche. Do lado oposto, um outro homem reintroduzia o bagaço de volta numa das aberturas, de forma a espremer o máximo de calda possível da cana. O bagaço era recolhido junto do primeiro homem e depois espalhado nos "terraços" onde ficava a secar ao sol. O processo de “introduzir cana-virar bagaço” no trapiche não era tão simples como à primeira vista poderá parecer. Exigia muita agilidade e cuidado da parte de quem estava encarregue da tarefa e não raras vezes acontecia a fatalidade de alguém introduzir alguns dedos por entre os ferros juntamente com as canas ou o bagaço.
A calda era recolhida em baldes de latão ou de madeira e depois despejada em pipas que eram armazenadas na casa de calda. Lá ela ficava em processo de fermentação por alguns dias até ficar pronta para ser levada ao alambique para dela se destilar a aguardente. A calda “ferventa”, ainda bastante adocicada, quando bebida dava umas mocas que deixava a pessoa a ver o mundo a girar. No alambique, à calda “ventilada” juntava-se uma porção de água-pé (“repé”) e, por efeito do aumento da temperatura que se produzia no forno (“forro”) do alambique, a mistura condensava-se no cabeção de onde ela seguia para o cano. Ao longo de uma calha feita de mastro de sisal, o cano de metal era arrefecido por água corrente, fazendo com que o vapor de aguardente passasse para o estado líquido. A aguardente era recolhida em garrafões que depois eram depositados nos alçapões existentes na casa do meu avô. De lá seguiam para São Vicente e São Nicolau, ilhas onde eram vendidos a preço de ouro.
A faina da cana-de-açúcar ia de meados de Fevereiro até Junho. Com a chegada do tempo das “aságuas” os bois eram enviados para campo-abaixo para livremente pastarem ao longo de alguns meses na erva verde que crescia com a chegada da chuva. Nessa altura, deslocávamo-nos para “Tabuadinho” para a sementeira e por lá ficávamos por um longo período. Uma das principais diversões da criançada era montar armadilhas (“sorças”) para a caça dos pardais. Pardal assado é um manjar que só quem já o comeu sabe quão delicioso é. Hum, só de lembrar já tenho a boca a salivar!
Com o tempo, as secas, o aumento dos mil-pés, a introdução da cana BC14 e os engenhos movidos a motor mudaram drasticamente o quotidiano rural da ilha. Os trapiches aos poucos foram desaparecendo, dando lugar a esses engenhos mais eficientes, não obstante muito barulhentos, e os bois reformaram-se. A aguardente perdeu a sua essência e o seu genuíno sabor. Numa economia de loucos, juntou-se o açúcar refinado à calda pura de cana para se produzir cada vez mais por menos, até que o preço de um litro de "aguardente" chegou mais ou menos próximo do valor pelo qual se compra 1,5 litros de água engarrafada. Muita gente morreu por culpa do abuso do álcool. Muitos jovens tiveram que (e) migrar para fora da ilha à procura do emprego que por lá começou a escassear. O resultado é aquele que está à vista de todos: uma ilha de potencial à beira do colapso. Até quando?
Aos valentes homens que souberam dignificar o nome de Santo Antão dedico “Kêpritche nê Terpitche”, na esperança que a nossa geração e as vindouras consigam ainda a tempo mudar o curso da ilha.
(autor desconhecido)
KÊPRITCHE NÊ TERPITCHE
ja’s cangá boi nê terpitche
amosh, ah cuitod de ks bitche
sis vida ê só rêdiá e mais rêdiá
oh tont rêdiá c’tá fezê gente mêriá
eh cangá blimundo ma zêbion
eh d’scangá zêbion, cangá truvon
eh d’scangá blimundo, cangá zêbion
um cangá-d’scangá boi dê confuzon
ó jôn d’zidor mêtê cana
kêpritche nê terpitche
ó menêl d’tiudor d’svrá bogosse
kêpritche nê terpitche
oh mosse bsot mexe’m e’ch brosse
cana d’strengêr insocôd nô sôc
oh deus cê velê’m esse praga
kê merdon en’é aguardente
é vênene c’ti tá matá gente
min sis largue’m dô mon
má ess estória de fezê merdon
só pa estod tá intchê nê bidon
pa depôs bem sei tá matá criston
eh djô bique
ah tont t’ma côquê
ma grogue tá mut frôquê
nô têm kê reforçá limbique
pirulito ôa bô é meldito
bô crê tchêpá c’nem kêbrito
ah sê bô en’ fezê’m ks quitche
hoje e’m tá mandá pôb berbitche
Em memória de Nênê e Menêl de Polina (que as vossas almas estejam em paz)